Mexo

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:::em tudo (foto: Rafael Bertelli)

terça-feira, abril 21, 2009

Nostalgia Carioca

Não é bacana não, passar as tardes sozinho, em meio a guimbas e mais guimbas de cigarro, só levantando daqui pra encher o copo outra vez. Aliás, porque que eu ainda não trouxe a merda do uísque pra cá? Ah, não, é bom eu me levantar de vez em quando, melhor deixar a garrafa lá.

Pois então, meu tempo já passou, eu sinto mesmo que passou. Quer saber? Eu não posso mais sair na rua com meu chapéu predileto, acredita? Outro dia desci pra comprar cigarro na banca e você sabe o que o cretino do jornaleiro me disse? “Ô, Seu Aércio, esse chapéu já era, né pô, é completamente démodé”. Nem respondi o filho da puta, mas subi pensando que ele era viado. E na noite do mesmo dia, eu acho, quando desci para comprar umas coisas no mercadinho daqui de baixo, tava lá o sacana se atracando com o filho do dono do bar, dentro da barraca de jornal, acredita? Esse tipo de coisa a gente só vê em Copacabana mesmo. É, daí eu subi sabendo mesmo, já na certeza que o filho da puta era viado. Pra saber se chapéu é démodé ou sei lá que porra é essa, tem que ser boiola. Homem que é homem não diz esse tipo de palavra: “démodé”. Homem que é homem nem repara no chapéu do outro, isso é coisa pra mulé, que é tudo cobra e fica uma falando do cabelo da outra, do rabo da outra, do marido da outra. Tudo bando de sem vergonha.

Vira para o lado e se abaixa como se fosse pegar algo no chão ao lado da poltrona.

Ai, puta que pariu cadê a garra... ah!

Volta e senta na cadeira. Levanta-se outra vez dizendo:

Quer saber? Vou trazer a garrafa logo pra cá que depois desse copo eu sei que não me levanto mais. Mas é isso aí, é assim mesmo... A vida é essa sem-vergonhice de um querer meter no outro. Quanto mais fodido o fulano tá, mais satisfeito o beltrano fica hahahaha... É tudo uma desgraça.

Eu sinto é saudade daquele meu tempo difícil... Do futebol no radinho, da mulherada de roupa na rua, o bonde, o maracanã. Eu sinto falta do samba na casa do Almir, com o Mauro, a Cledir, a Zoé, o Fernandinho, o Catraca... Porra, nem lembro mais o nome do Catraca. Era cerveja e mais cerveja, uma atrás da outra. Era um cigarro aqui, um beijinho ali... Mais cerveja... Tinha o Dodô, o Miguel, o Francisco Pé Preto, a Miloca, a Nenê, o Genivaldo, a Emília... Ai a Emília... Outro dia encontrei com ela no calçadão. Ainda deve morar lá por aquelas bandas, bairro de Fátima, sei lá, deve até ter mudado de nome aquela bagunça ali. Nem sei o que ela tava fazendo aqui, mas tava no calçadão, caminhando, com um pedaço de pau numa mão e um cachorro do lado. Fiquei até feliz de ver ela, sabia, mas não cheguei a cumprimentar. Tem certas coisas que é melhor deixar guardadas, deixar quieto. O rosto dela nem é mais aquele de antes. Também, né, o tempo passa para todo mundo. Ainda bem que não sou só eu com essa cara de quem só ta esperando a morte chegar... hahaha...

A Emília era assim aquela morena bonitona cheia de gingado, charmosa que só ela. Era um perigo de mulé, que nem o diabo, “cobra-serpente”, sabe aquela que sai do cesto assim dançando, te olhando e de repente te abocanha? Desse tipo aí. Ela até me abocanhou algumas vezes, pra ser sincero. Eu não era mole não também, gostava mesmo de um chamego de morena. E a Emília tinha um jeito todo especial. Um cheiro de vida, de samba. Foi muito ruim ver ela daquele jeito no calçadão, meio velha, meio suja. Vai ver nem era ela e eu é que to bebendo demais. Mas eu acho que era. Ninguém confunde a Emília. Achava que ela também tinha batido as botas. O Genivaldo foi o último que fiquei sabendo da morte e antes dele todo o grupo já foi eu acho. A Zoé foi a primeira. Eu lembro, coitada. Morreu no colo do Mauro, aquele sacana. Mas desde cedo que eles lá se apaixonaram um pelo outro. Casaram cedo, os dois, um com o outro. Aí um dia a Zoé morreu. Na época a gente ainda tinha contato um com o outro. Ela até morreu nova. Sessenta anos, eu acho. É nova pra caramba. Foi no enterro dela que a gente se viu pela última vez. Não só eu e a Zoé mas o grupo todo. Acho que a gente entendeu ali naquele cemitério, naquele lugar de tristeza, que o nosso tempo já tinha passado. Que dali em diante a gente não ia mais se ver. Meio que uma coisa de deixar cada um morrer à sua maneira entende? Sem querer que o outro acompanhe e sofra, entende? Meio que uma coisa assim pra preservar aquela coisa, aquela imagem do samba, da alegria, da mulherada. E assim tem se cumprido esse combinado sem palavra ou aperto de mão. A gente nunca mais se viu mesmo, tem uns vinte anos. Engraçado que pra gente se ver era só ir no bar do Oliveira. Sempre tinha um do grupo lá e logo vinham chegando os outros, era batata. Mas ninguém mais vai no Oliveira eu acho. Porque outro dia mesmo, acho que foi no dia que eu vi a Emília, me deu saudade e eu voltei no Oliveira. E não tinha ninguém lá. Nem o Oliveira tava lá. Aí comprei uma garrafa dessa aqui, acho até que foi o filho do Oliveira que me atendeu lá, mas nem perguntei. Então comprei a garrafa e voltei pra Copacabana, aqui pro meu apartamento. Nunca foi tão cansativo ir até o Oliveira.

Ai, merda, acabou o cigarro. Vou descer na banca do viadinho e buscar outro maço. Ah, mas vou botar o meu chapéu porque quero ouvir de novo ele falar do meu chapéu. Porque aí eu vou dizer na cara dele que ele só se incomoda com meu chapéu porque é um viadinho sacana, aquele filho da puta.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo...futuramente vamos ver a vida assim!Se eu sair com meus piercings e acharem'demode' mandarei tomar no cú.