Mexo

Mexo
:::em tudo (foto: Rafael Bertelli)

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Ir mais longe para ver melhor

A distância entre a ideia e o que a torna real
A distância entre o ser e o estar
A distância entre o que sou e o que desejo ser
A distância entre o que quero e o que a vaidade me cobra
A distância entre o que me cobre e o que me penetra
A distância entre o que me penetra e o que absorvo
A distância entre o que penetro e o que revelo
A distância entre revelação e descoberta
A distância entre os olhos e entre os pontos que os olhos tocam
A distância entre o ego e a alma
A distância entre a consciência e o desapego
A distância entre o desapego e a covardia
A distância entre querer e ser capaz
A distância entre o ópio e o bálsamo
A distância entre ter e trazer consigo
A distância entre perder e jogar no vento
A distância entre amar e deixar ir embora
A distância entre a generosidade e o orgulho
A distância entre intenção e gesto
A distância entre a mente e o caos
A distância entre o que é leve e o que se deve carregar pra sempre
A distância entre ver e sentir
A distância entre inspiração e sopro
A distância entre amizade e cumplicidade
A distância entre lealdade e gratidão
A distância entre o prazer e o medo
A distância entre pele e sangue e instinto
A distância entre solidão e calma
A distância entre mensagem e informação
A distância entre o caminho e onde se quer chegar
A distância entre fazer sentido e ter razão
A distância entre ter razão e ter certeza
A distância entre mim e você.

sábado, novembro 28, 2009

Sobre eles dois

- tá conseguindo ver?
- ah, penumbra, né, mas dá pra ter uma idéia.
- ah, então vamo inventar.
- como assim?
- ah, sei lá, vamos ficar tentando adivinhar o que eles estão fazendo.
- tipo, se ela vai deixar aquela taça de vinho cair em cima dos trabalhos dele quando bater o dedinho mindinho do pé na mesa de centro?
- é... extatamente! assim mesmo. e ela vai ficar nervosa, envergonhada, vai se sentir constrangida e infantil, ficar olhando aquilo sem saber o que fazer e vai dizer "nem adianta tentar limpar, né. bom, agora você me odeia."
- e ele vai passar a mão no vinho e misturar com a tinta fresca... vai dizer "ih, relaxa, tá valendo. vale tudo. essa aqui vai prum lugar especial na casa, certeza." afinal, ele a ama.
- ele a ama?
- claro ué, não deu pra notar? o que que é essa correia pela casa, vinho na mão, guerra de petisco, sei lá o que...
- gente, eles estão se divertindo, não pode? tem que ser amor?
- e por que não poderia ser amor?
- cara, poderia, mas duas pessoas correndo loucas pela casa, ou trepando loucas pela casa que fosse, não necessariamente são duas pessoas que se amam. podem ser duas pessoas que gostam de se divertir juntas. que são muito íntimas, que gostam de correr e trepar uma com a outra simplesmente. não?
- é. tá.
- o que to falando é que sim, ali há uma troca. e nem toda troca incrível é amor. e não é porque não é amor que é menos, entende? há essa outra coisa. há o compartilhar com alguém qualquer coisa pela simples alegria de compartilhar. há verdade nisso. mas há outras coisas tb, po. ele adora viajar. ele quer viajar sozinho, girar o mundo... ele não quer levá-la nessa viagem.
- não?
- não.
- por que ué?
- porque é uma coisa que ele quer curtir sozinho. se encontrar. ver outras coisas, abrir o peito pra novas paixões, novos amores...
- ele vai sentir falta dela.
- às vezes. mas vai tá vendo muita coisa. lembra e esquece rápido.
- mas cada vez que ele abrir o email e ler uma mensagem dela, vai lembrar dessa noite dos dois correndo e rindo nus pela casa, pisando em amendoins e estalando doritos com as costas.
- a noite que ela cagou com um trabalho belíssimo dele.
- a tela que ele pendurou no quarto dele depois.
- o quarto que tá fechado há seis meses, desde que ele se mandou pra indonésia.
- mas lá na indonésia ele tá lendo os emails dela. e tá lembrando. e sorri quando lembra. porque lembra dela acordando com o cabelo duro colado de tinta. e ele adora o jeito dela nem se importar. as pontas dos dedos laranjas de doritos...
- aí ele suspira, diz pra si mesmo "massa", fecha o laptop e volta pra praia. porque ele sabe que não adianta saudade, ele tá vivendo um momento muito especial, particular e ele deseja que ela esteja bem.
- ela morre de saudades. só fala dele.
- ela esquece. já já arruma um namorado. antes dele até.
- e se ele sabe ele sofre.
- ele sabe. ela escreve contando. e sofre. um pouco. mas sente que enfim pode viajar sossegado. no fundo é isso. agora quer ir a nova zelandia.
- antes não? então ele pensa em voltar! esse lance dele querer estender a viagem é sintomático.
- talvez. mas o fato é que a vida agiu assim. é sempre assim, tipo lei de murphy.
- ela tem a chave do apartamento dele ainda.
- ela entregou pro melhor amigo dele. avisou por email.
- ele lembrou da noite dos amendoins na hora. e lembrou do quadro pintado com vinho.
- ele vai ter que tirar o quadro do quarto quando voltar.
- de repente ele pensou em voltar. ele tá na agencia de viagem pra comprar passagem pra nova zelandia.
- o quadro no quarto incomoda ele demais.
- ele compra passagem pra cá.
- ele nem avisa que vem. não quer bagunçar a vida dela, não é justo. ela demorou tanto pra ficar numa boa.
- ele entra no apartamento e tem mancha de dedo laranja no interruptor. doritos. ele sorri.
- ele vai direto no quarto. tem que tirar a tela de lá.
- ele deita na cama e fica horas olhando pra tela, lembra de cada detalhe da noite.
- ele dorme.
- ela entra no apartamento. pede a chave pro amigo pra pegar uma coisa dela e vai lá.
- de fora ainda ela nota as luzes acesas, por debaixo da porta. ela acha que foi o amigo que esqueceu.
- quando entra no apartamento, ela demora a entender as malas na sala. ela chega no quarto ainda sem saber o que pensar sobre as malas.
- ele tá dormindo de barriga pra cima, braços cruzados sob a cabeça.
- ela grita "não acredito!" e se joga na cama e abraça ele.
- ela faz mil perguntas.
- ele só faz uma.
- "bora pra nova zelândia?"

...

sexta-feira, novembro 20, 2009

Arte

Figura em forma de som.

Colorido, estampado, textura em profundidade.

Luz que ascende da beleza de cada fresta dos dois corpos que somos nós, emoldurados de qualquer espaço.

Levitando quentes sobre todas as coisinhas que já foram idealizadas, ditas ou feitas – o tempo, a chuva, o escuro, o medo, a fome, a calma, o que se come, as fotos, as letras, as línguas, as feiras, as exposições, os trens, as vias de mão dupla e as de mão inglesa, o que se perde, o que se esquece, o que se espera, o “como?”, a razão, a moral, o amor, o sexo – nesse mundo que se suspende pra nós, restando o Novo. O Novo. Telas brancas, pincéis em punho e na saliva, tinta.

sexta-feira, novembro 13, 2009

Inalterável Momento de Partida

Fui medir a distância de mim até você e me perdi no caminho. Dei pra medir os metros entre nós com passos que não eram meus.

As marcas no chão me levaram a outro ponto. Eram oito. Eram oito marcas no chão. Era outro o ponto aonde me levaram as marcas no chão?

O que eu deixo de ver, deixa de existir? Se esvaem de mim lembranças do que durou pouco. Se apagam de mim no caminho percorrido as marcas que não se aprofundaram por questões de defesa, ética, convenção, moral e tempo. Deito-as todas no chão, as oito marcas que fez em mim. E deixo que me levem a outro ponto.

E meço em saudades a distância que se apaga de marcas sob os pés e se concretiza em passos que não eram meus, e acabam por me levar pra longe.

segunda-feira, novembro 09, 2009

Espera

Berço. Em seus braços adormeço.
Moro. Minha casa em suas costas. Minha muralha, fortaleza.
Calo. Junto dos olhos que param nos meus para não dizer nada além do suspiro que grita pelas narinas e ecoa em minha face. Calo, emudeço.
Voz nos seus cabelos que voam na janela. Moldura rústica da sua silhueta esguia. Torso nobre bronzeado à contraluz e o mar lá atrás.
Sou pálida diante das cores das suas articulações, da fluorescência do seu hálito. Branca e estreita ao lado, ao seu lado na cama, no meu lado da cama. Estreita eu e o seu lado tão maior, enquanto estreito os seus passos com meus sonhos.
Corro. Pra areia branca dos seus dentes e construo vilas inteiras que desmancho na saliva de ondas de afeto ávido. Demonstrações oceânicas de um amor oceânico.
Acordo. E o seu lado da cama é mais largo que nunca. Acordo. E os seus cheiros já não param mais aqui.
Procuro. Uma maneira de entrar em desacordo com a espera.
Desacordo. Volto a sonhar contigo.
Berço. Em seus braços anoiteço pra amanhã chegar mais cedo.

domingo, novembro 08, 2009

Eulália

Tem som de água da bica
Pinga na louça de ferro
Vem de manhã Eulália
E lava a louça da pia

Estende a roupa na corda
Bota os panos pra corar
Cobre a cabeça com véu
Pra missa do meio dia

Faz uma prece bem bonita Eulália
E volta pra esquentar a sopa
Que hoje esfria, à noite
Deu na televisão

Tem som de brisa nas plantas
Caiu a tarde, Eulália
Já tem sombra em cima dos panos
Cuida pra não acordar o cão

Torce um por um e bate à pedra
Estica um por um na corda frouxa
Deixa que o sol resolve o sereno do pernoite
'que amanhã é dia quente, Eulália
Deu na televisão.

segunda-feira, outubro 26, 2009

Trilogia Aurora

Aurora

Nada do que se queira é por vaidade, mas tudo o que aqui se fala é, em verdade, só querer. Eu quero te encontrar essa noite. Quero te falar ao ouvido as coisas que vivi em minhas viagens. Quero que saibas da minha vida, quero que duvides da minha coragem. Quero ver seu sorriso largo, debochado quando te disser que matei três dragões no braço, que peguei uma manada inteira num laço e que tudo isso eu faria de novo só pra ouvir essa tua gargalhada...


Hoje à noite vai ter festa

Na areia da praia, à beira-mar

Sob a luz prateada que a lua empresta

Para eu poder te achar

Tu sapateias louca na areia

Causando inveja nos mortais

Mulheres falam da vida alheia

Homens divertem-se no cais

Essas putas não me deixam! Querem meu dinheiro, meus cigarros! Não agüento mais aqui, vou até a areia falar contigo. Há tanta gente... quando enfim te encaro, a voz me trai. Espero então por um passo teu. Tu corres em outra direção.

Doida, te atiras nas ondas gritando uma canção, e de novo me pego apaixonado a contemplar teu show.


É quando ouço as mulheres falando:

- Olha lá a Aurora querendo esquecer.

- Bebeu tanto a coitada. Amanhã vai sofrer.

Mas o mar ta é brabo nem ouço mais ela cantar...

A Aurora não sabe nadar, logo começa a tossir

Eu vou atrás dela tentar resgatar, ela grita “me deixa morrer! Me deixa aqui!”

Mas eu pego ela a força, ela não sabe o que diz, é muita água na ideia, eu não vou ouvir.

Já na areia, ainda fraca, a valente levanta e vem me bater. Me xinga de tudo que é nome, diz que eu não tenho o direito, que ela quer morrer.

Aí eu digo que é pra ela parar, que é pra pensar melhor, porque se ela deixar essa vida, eu vou ter que viver só. E que só eu não consigo porque também carrego dor aqui no peito:

- sem desmerecer teu sofrimento, teu bem tá morto, não tem mais jeito. O meu anda chorando por aí, e eu amo de longe por respeito. Ninguém pode trazer o teu amor de volta, que pra te ver feliz, eu mesmo já teria feito. Agora, não pede pra eu desistir do meu, porque

não tens esse direito.


Aurora II

Pra festar à beira mar

Fez uma trança bem longa

E com sete fuxicos enfeitou pra sorte dar

A saia em flor com blusa de renda

No pescoço o colar de contas

E a guia que Iansã ungiu.

Nos olhos o brilho apagado

Pelo choro da morte

Na boca a falta do amor que partiu

Dança ao luar, Aurora

Faz que esquece o luto,

Mas no peito ainda chora

Desfaz a trança bailarina da areia

Em sua sorte sapateia

E vai ao mar em oração.


Com a mão no colo:

- Iansã me dê coragem

Iemanjá, me dê passagem

Que eu vou buscar meu coração


Aurora III

Numa noite em mar aberto

Um temporal despencou

Mandinga de Iemanjá aos raios

Tomou dela o pescador

Numa noite em mar aberto

Um temporal despencou

Odoia! Deusa das águas!

Levou dela o grande amor

Festa da lua na areia

Quem no samba se desmancha

Distraindo o sofrimento

A mulher de longa trança

Com a mão no colo

Encara o mar de frente

Pedindo licença aos orixás

Se atira nas ondas valente

Há quem diga

Que quando bebe apronta

Que a água fria vai curar

O que ela tomou além da conta

Mas é o coro que canta

Na voz do destino anuncia

Que o que Aurora quer matar

Não se cura na água fria

Festa da lua na areia

A mulher de longa trança

Que no samba se desmancha

Tentando enganar a dor

Com a mão no colo

Encara o mar de frente

Se atira nas ondas valente

Quer se juntar ao pescador

Há quem diga

Que ela tomou além da conta

Que quando bebe apronta

Que a água fria vai curar

Mas é o coro que canta

Na voz do destino anuncia

Não se cura na água fria

O que Aurora quer matar