Mexo

Mexo
:::em tudo (foto: Rafael Bertelli)

sábado, dezembro 01, 2007

Duas ou três coisas

Andou para lá da sua casa duas, três quadras naquela direção. Pôde jurar ter visto... e se esqueceu.
Percorreu aquele caminho com o pensamento vagando entre coisas que já nem saberia dizer... Duas ou três quadras dali e parou.
Pensou em qualquer razão pra continuar e não achou. Também em voltar não viu razão.
Então sentou-se no meio-fio frio e estranhou o conforto. Devia estar cansado. Pararam dois carros a sua frente e foi obrigado a mover-se dali. É bem verdade que permaneceria ali para sempre, inerte, absorto em pensamentos que já esquecera. Mas caminhou de volta duas ou três quadras que ele já nem reconhecia.
Dentro de casa havia uma esposa que ele se esquecera de amar por tanto tempo que ela foi virando vapor e se dissipou. No entanto, ele continuou parado no meio da sala como se fosse possível fitá-la. Olhar fixo nela como se fosse possível reconhecê-la e desistiu. Caminhou até a varanda onde o vento batia forte bagunçando seu cabelo, obrigando-o a respirar o mar e talvez fosse esse o maior de todos os sés prazeres na vida, mas já não se lembrava de nenhum.
Ouviu uma voz esquisita ao longe. Foi procurar. Uma mulher negra cantava na cozinha. Ela sorriu para ele, apontou para o fogão onde duas ou três panelas cheiravam e pôs-se a gargalhar com dentões brancos que ele não lembrava e foi virando vapor e se dissipou. Perdeu-se naquela cozinha esfumaçada.
Ele correu pro fogão a acudir uma única panela que queimava vazia. Queimou os dedos, abriu a torneira, respirou fumaça e quis xingar. Porém não se lembrava como.
Foi ao banheiro buscar qualquer coisa para os dedos que ardiam e ao girar a maçaneta da porta trancada ouviu: “To aqui, espera!”, largou-a num susto e a porta abriu-se lentamente revelando um banheiro úmido de espelho embaçado. Sua filha virara vapor e dissipara-se.
As pontas dos dedos ardiam, mas já não se lembrava de queixar-se. Teve sono. Estava exausto. Já não encontrava seu quarto, seu pijama. Adormeceu em pé, encostado na parede colorida do corredor. Dormiu dois ou três dias e isso não fazia diferença quando despertou. Descolou-se da parede em direção a sala carregando sua silhueta verde grudada às costas. Deitou-a no sofá pra descansar e também ela foi virando vapor e se dissipou.
Já não se via em lugar nenhum da casa. Não se reconhecia em espaço e tempo algum. Quis chorar mas não lembrava-se como. E não lembrar doía duas ou três coisas que ele não podia sentir porque já não sabia...
E foi virando vapor... e se dissipou.

Um comentário:

justfeel disse...

De fato, voce e' uma grande escritora. Se nao grande, boa.